Não abandonamos o quarto no domingo
Acordamos e
não nos levantamos. Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.
Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa. É
um domingo inteiro assim, entre travesseiros, almofadas e edredom.
O quarto
permanece trancado, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta. De vez
em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar
frutas ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés
para não assustar as pálpebras. Não é aconselhável demorar pela sala, para a
claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua. Somos sonâmbulos um
do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro. Passamos os dias no
colchão travando histórias e revelando segredos. A cama é o nosso hotel, nossa
casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa
água-furtada.
A cama é o
que precisamos do mundo, o resto pode levar. Reduzimos o universo àquele
estrado de madeira, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores
antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente. Na verdade,
sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de
fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida. Decoro suas
sobrancelhas, seus suspiros, sou um mímico atento de seu rosto. Faço perguntas
despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova do amor. Interesso-me
por qual lugar que sentava no colégio Champagnat. Me diz que era no fundo, com
as costas coladas na janela. E você me interroga a cor da minha térmica no
jardim de infância do Santa Inês. Falo rápido que era azul. Quem teria coragem
de fazer essas questões senão quem ama? Mais: quem responderia com naturalidade
essas questões senão quem ama?
Não nos
assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos
envergonhamos da loucura. Intimidade é não temer o que será feito com nossas
palavras. Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na
moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita,
argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos
pecados, sussurramos bobagens. Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e
ouço na mesma hora. Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam. Tudo é intenso
entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos
fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos. Os vizinhos devem suspeitar que
já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.
Fabrício Carpinejar
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