Distopia


 
Não sabemos como tudo isso começou, embora desconfiemos. Talvez tenha sido quando os discursos inflamados deram lugar aos debates embasados ou naquele dia em que as pessoas ficaram tão cegas de ódio que não eram capazes de entender o que liam nos jornais. Pode ter sido ainda no dia em que todos ficamos espantados com as novas regras e leis que nos foram impostas para que tivéssemos segurança. Não sei, não lembro. Acabamos todos esquecendo. Tudo é fragmento. Nada parece se encaixar. Tínhamos uma vida antes disso, mas tudo parece um borrão. Temos ainda muitas dúvidas de como tudo o que vivemos hoje iniciou, só sei que em algum lugar em nós, entre a gente e no meio de tudo, acabou nos transformando nisso.
Era em favor de nosso benefício, diziam, e pacientemente acatamos, como um rebanho que segue um dono, éramos ovelhas amedrontadas entregues às mãos de nosso novo pastor. Ele para nós um mero desconhecido, mas que nos conhecia a ponto de nos chamar pelo nome de batismo. Muitos de nós se sentiam felizes pelo reconhecimento do Líder (teríamos que chamá-lo assim) e exclamavam: - Esse nos aprecia melhor que qualquer outro neste mundo! Eu não achava isso. Talvez fosse um modo de nos controlar mais facilmente. Talvez... Já não sei mais quantas vezes essa palavra apareceu em meus vocabulários nos últimos dias.
A nossa sociedade mudou um pouco. Fomos restringidos de quaisquer interações com o mundo externo, pois ele nos afetava demais, causando transtornos e doenças que acabaram se tornando comuns entre nós. Hoje vivemos em casas comunitárias de modo que resolvemos o problema da moradia que, durante séculos afligia, a nossa população. Pelo menos era o que se falava nos telões que foram instalados nas praças assim que subiu ao poder o novo governo, e fazia propaganda de nossos novos Líderes. Os telões eram uma de nossas poucas diversões. Todos tínhamos um, presente do Líder, e ali passávamos horas e mais horas enquanto não estávamos trabalhando. Claro, que é bom frisar que somente os jovens podiam ficar mais tempo em sua tela portátil, afinal os adultos tinham que dezesseis longas horas de trabalho.
Não se podia reclamar de falta de trabalho, afinal tínhamos tanto que não nos sobrava tempo de pensar. Houve um tempo em que pensávamos, eu lembro, sobre a vida, sobre as coisas, mas era perturbador, havia sinais de insanidade em que pensava demais e o Líder falou certa vez num telão que músicas e propagandas nos traria alento para evitar em nós todo e qualquer pensamento perturbador a respeito da ordem natural das coisas. E isso era bom! Pensar dói, cansa, entristece. O bom é levar comida para casa e fazer algo útil na vida. Não líamos quase nada também. Eram raríssimos os livros e as bibliotecas ficavam em salões nobres dos quais, nós os Comuns, não podíamos acessar. “Conhecer para calar”, era uma frase que existia na entrada de uma biblioteca fechada à visitação.
Esses dias, meu filho menor me perguntou se nós éramos felizes. Eu não sabia o que dizer. Havia esquecido o que era essa palavra. Talvez ela tenha existido um dia, ou talvez seja apenas mais uma mentira que os Loucos pregam por aí. Ah, deles é diferente, tem um brilho de maluquice que chega a ser belo, mas como tudo que é encantador e seduz, não devemos nos aproximar deles, pois são subversivos e geralmente desobedientes com os Líderes pregando sandices difíceis de digerir. Então, atrás de uma resposta que não exigisse pensamento e sofrer, ou que não segue uma lógica insana, disse ao meu pequeno que as coisas estão bem desse jeito e felicidade é ter segurança. Ele então me devolveu a resposta com outra pergunta: - Estamos seguros mesmo, papai? A essa pergunta eu não tinha resposta.

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