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Mostrando postagens de novembro, 2018

A culpa é de Mercúrio

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Aline é daquelas visitas inesperadas em horas apropriadas. Chegou com um guarda-chuva na mão (embora não tivesse uma mínima possibilidade sequer de garoa) e uma sacola de pães na outra e me pediu para fazer um café. Não era cinco da tarde e eu pensava em correr um pouco na avenida para jogar hormônios de prazer em meu sistema circulatório, mas desisti prontamente para te fazer companhia e comer os ricos carboidratos da padaria da esquina. Enquanto preparava o café e cortava umas fatias de um bolo de chocolate que havia feito uns dois dias atrás, ela lia despojadamente o Caderno 2 do jornal que achara perdido em algum canto da bagunça que chamo de casa. Quando já trazia as canecas para montar a mesa ela me diz: - Thiago, você sabia que Mercúrio está retrógrado? No que dei de ombros e respondi: - E isso significa...? - Significa que nossa comunicação vai mal, nossas escolhas ficam atrapalhadas, somos mal interpretados. – disse ela. O olhar de Aline era de uma preocupação

O falso sábio

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E sabia coisas sobre o funcionamento do universo, versava sobre literatura alemã, estudou os pré-socráticos, fazia Reiki e meditava todos os dias. Comprava livros de filosofia contemporânea e psicanálise, pensava em escrever artigos sobre mitologia nórdica, lia vorazmente os russos, possuía conhecimentos profundos sobre a ayurveda e medicina tradicional chinesa. Viajou mais de 30 países nos últimos anos, falava fluentemente seis ou oito idiomas – não me recordo -, ouvia Bach no som do carro e me disse, uma vez, que já havia tido contato com óvnis. Mas nunca teve contato consigo. Conhecia tudo e desconhecia a si mesmo.

Quebra-cabeças

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Já fui roqueiro, pagodeiro, reggaeiro , hoje, porém, nem sei mais em que estilo musical consigo me enquadrar. Preferi destilado a cerveja por longos anos, hoje não sei viver sem a gelada nos fins de semana (e nos meios de semana, por que não?). Era religioso a ponto de não perder um sermão do padre na noite de domingo. Acreditei que os amores são para sempre e que a gente não pode mais amar uma segunda, terceira, milésima vez. Gostei muito de chás na infância, o sabor do mato macerado em água quente me trazia o conforto de estar em família, mas já os detestei por um longo tempo e voltei a tomá-los recentemente. Por um momento pensei que meus amigos de adolescência seriam os meus amigos eternos e hoje conto amigos nos dedos da mão. Li muitos livros de autoajuda e hoje não consigo nem mirar suas capas na livraria. Já fui tantos. Hoje sou um grande compilado de tudo aquilo que um dia fui.

Adulte-se

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Você está doente em casa e não consegue ir ao trabalho. Quem organizará suas planilhas atrasadas e o material acumulado para você? Ninguém! Quem vai lhe dar o remédio e ajudar a melhorar? Ninguém! Então você vai ter que se levantar e ir ao médico, mesmo sem forças para tanto. Terá que seguir a prescrição do medicamento receitado sem que alguém lhe lembre os horários. Você cresceu e terá que assumir as responsabilidades de uma gripe. E assim como uma gripe, você tem que limpar a casa se deseja que ela esteja limpa, lavar os copos sujos na pia e fazer sua própria comida ou ligar para pedir algo para que não morra de inanição. E a partir da vida adulta que se descortina você percebe que todas as coisas do universo estão centradas em você mesmo e as decisões e escolhas a partir disso implicará em situações e caminhos que podem ser positivos ou não. Parece simples e ao mesmo tempo assustador, e é. Ser adulto é eternamente assustador e eu vivo assustado todos os dias desde que isso me

Piores melhores pessoas

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Ela caminhava como uma confiança desconcertante. Por fora, nada de padrões estéticos que a sociedade se orgulha de ostentar, muito pelo contrário, tinha os cabelos presos por uma caneta esferográfica verde levemente roída nas extremidades, usava um vestido puído e um casaco de moletom surrado, além de ter os tênis sujos de terra e as unhas por fazer. Desleixo, era a sua imagem. Será que ela quer passar essa imagem para nós? – pensei. Era notório o julgamento alheio, contudo ela se mantinha altiva, como quem tem a segurança de saber quem realmente é. Estava sentado ao fundo da lanchonete, próximo a janela, quando ela atravessou a rua e entrou no mesmo lugar em que me encontrava. Pediu um lanche, sob os olhares curiosos das pessoas que ali estavam, enquanto escolhia algumas outras coisas. Ela chocava e espantava as pessoas com o seu jeito de quem desistiu de viver para agradar as pessoas, a mim, porém, causava fascínio. Como alguém pode assim, de uma vez só, enfrentar o mundo? Como

Mudança de rota

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Depois de alguns anos a gente começa a perceber os defeitos do outro e escolhemos sempre, em qualquer momento do dia, todos os dias, entre abandonar o barco ou ficar, mesmo que ele comece a dar sinais de que alguma coisa já não é mais o mesmo. As velas, a proa, a tripulação, parecem estar corroídas pelo salitre que destrói de maneira quase imperceptível as coisas. As pessoas talvez mudem com o tempo, dizia a mim mesma. E a gente muda junto e com essa coisa cíclica e incerta não encontramos mais as versões que outrora havíamos esbarrado. Talvez os nossos eus não se topem mais e tenham ficado em um passado em que nós não vestíamos essa carcaça aqui. “Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes desde então...” Alice, no final das contas, não era tão “Alice” assim! Júlia Siqueira