A casa

Uma senhora que vive numa casa caindo aos pedaços num oásis da especulação imobiliária e riqueza paulistana. Cria alguns cachorros, usa uma pomada branca no rosto, protege veementemente árvores de uma possível máfia de desmatamento e aduba suas árvores com seus excrementos. Seu lar reflete o abandono de si própria. Vazia de si, numa casa cheia de tudo e nada.

Se você leu até aqui e sentiu tristeza com o infortúnio dessa mulher, não se apiede com essas linhas. Era uma mulher escravagista, dessas que até hoje circulam por aí entre nós e se sente superior por pagar mal (ou não pagar) a funcionária que lava os seus fundos e alimenta o seu rebento. Ela é igual àquela vizinha, ao seu amigo, seu chefe. Ela sou eu e você. Sim, ela somos nós. Frutos de uma sociedade que não lida bem até hoje com o seu passado escravocrata e não enxerga nas entrelinhas do racismo velado praticado diariamente a nossa culpa.

Somos culpados ainda por criar um espetáculo em cima de uma história de escravidão na qual a escravagista aparece como problema não por ter escravizado alguém, maltratado e humilhado uma pessoa, mas porque é um ponto fora da curva, uma excêntrica, uma “doidinha” como a tratam. E sabe por que isso acontece?  Por que ainda não conseguimos olhar para as nossas vivências, falas e posicionamentos e enxergar que em algum momento, mesmo que ainda não queiramos sobra um tanto da mulher da casa abandonada de Higienópolis em nós. E que isso nos coloca mais próximos dela do que dos justiceiros que queremos ser.

Quem não tem pecado que atire a primeira pedra! – repetimos nós a frase bíblica com as mãos cheias de pedregulhos.

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