Tinder
Não, não, não. Pensava enquanto ia deslizando o dedo pela foto,
descartando aquele rosto sorridente pedindo “me leva com você”. Não conseguia
encontrar aquele que fosse o rosto certo. Não por falta da dita beleza, havia
rostos que o agradavam, mas sentia que naquela perfeição geométrica faltava
alguma coisa. Nos dentes polidos. No cabelo bem penteado. Na camisa xadrez
vermelha. Na barba ruiva farta. Nada daquilo era ele. E não sendo, não tocava
no profundo abismo do coração. Raras vezes tocava o coração verde. Quando
sentia naquele rosto uma coisa familiar, como quando a gente se topa conosco
num espelho inesperado, mas eu existo mesmo? Tantas vezes já se perguntara.
Então quando via esse rosto que era seu mais íntimo alheio, entrava no perfil,
os gostos combinavam, tudo parecia certo, toda história já planejada dentro dos
olhos brilhantes exasperados, querendo a qualquer custo fugir de si mesmo para
se abrigar no cais do outro. Com o coração batendo e os dedos trêmulos clicava
no bendito coração verde. Mas nada acontecia. Não dava a combinação. Ou ele já
lhe descartara, quem descarta também é descartado, quem muito escolhe acaba
escolhido, ou ele simplesmente ainda não passara pelo seu rosto também pedindo
“me leva com você”, teria que esperar. O tempo que tudo sabe. Mas o tempo
passava e nada acontecia, nunca. Então esquecia. Por vezes também, por obra de
destino, apertava sem querer o coração verde em quem ele jamais quisera: e
combinava. Olhava assustado. Mas se nunca quisera, porque agora que tinha de repente
iria querer? Deveria aceitar só aquilo que fosse por acaso? Somente através do
erro poder-se-ia viver? É tão mais fácil aceitar o erro e com ele embarcar. Pra
depois naufragar e sofrer. Não, obrigado. Apertava o botão de descombinar e
ficava assim mesmo: sem o certo e sem o errado. Sozinho. Tinha vezes também em
que jurava que achara o amor de sua vida, a alma gêmea, e quando ia clicar no
danado do coração verde piscava aquela informação maldita: sua cota terminou,
compre o pacote ilimitado por tantos reais por mês: o amor era também
capitalizável. Nunca pagava. Sentia que se pagasse estaria vendendo a si mesmo:
prostituindo o seu rosto e comprando e dos outros. Queria que fosse assim:
naquele espaço mínimo que era a cota gratuita por dia, naquela cota iria achar
o rosto que lhe completaria. Mas não. Era sempre o X vermelho. Não. Não. Não.
Não quero. É tão mais fácil repelir o que não nos é. Para que fiquemos sempre
sendo aquilo que somos, pois nunca poderia ele se jogar no que era
desconhecido? Quem não procura o escuro, jamais dá um passo adiante. Fica
dançando na mesma marca de giz, preso na corda que só avança até certo raio:
nunca será iluminado pelo relâmpago de Zeus. Bailando consigo mesmo, insistia
em passar os rostos que o acusavam. Acusavam de quê? De ele ser ele. O que não
era rosto compatível, era a prova – através do contraste – que ele existia, e
que era diferente. Só queria encontrar o que fosse possível? Ah, tantos já
amaram o impossível e morreram por ele: Romeu nunca morreria por uma aliada da
família. Não é por qualquer Helena que se faz uma guerra. Mas isso ele não
sabia, ou não queria saber. Não. Não. Não. Passavam os rostos, fragmentos de
futuro: aquilo que poderia ter sido e não foi. Aquilo que se perde no vazio
inominável, pra onde vão os dados? Olhou para aquele rosto um instante, quase
cedeu. Não. Também passou. Do outro lado da cidade esse mesmo rosto disse sim
ao destino cruel que era um coração verde batendo de esperança por nada.
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