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Eu: matéria indefinida

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Tem dias que quero ser eu. Eu próprio, primeira pessoa do singular em totalidade, sentindo cada pedaço meu até enjoar de mim. Escrevo cartas, traço rotas, ouço músicas ruins e outras tantas incríveis, começo um livro que abandonei em algum lugar da vida, rabisco palavras incompreensíveis. Viajo em mim na compreensão de que olhar para dentro, ainda que de vez em quando, me leva a lugares e paisagens que eu ainda não registrei na memória. Jogo os braços ao lado do corpo, respiro fundo, paro de atuar, cancelo a performance. Ali em algum lugar de mim há um eu escondido, que não é nada daquilo que todos veem ou sabem, é meu estado puro. Matéria indefinida.

A casa

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Uma senhora que vive numa casa caindo aos pedaços num oásis da especulação imobiliária e riqueza paulistana. Cria alguns cachorros, usa uma pomada branca no rosto, protege veementemente árvores de uma possível máfia de desmatamento e aduba suas árvores com seus excrementos. Seu lar reflete o abandono de si própria. Vazia de si, numa casa cheia de tudo e nada. Se você leu até aqui e sentiu tristeza com o infortúnio dessa mulher, não se apiede com essas linhas. Era uma mulher escravagista, dessas que até hoje circulam por aí entre nós e se sente superior por pagar mal (ou não pagar) a funcionária que lava os seus fundos e alimenta o seu rebento. Ela é igual àquela vizinha, ao seu amigo, seu chefe. Ela sou eu e você. Sim, ela somos nós. Frutos de uma sociedade que não lida bem até hoje com o seu passado escravocrata e não enxerga nas entrelinhas do racismo velado praticado diariamente a nossa culpa. Somos culpados ainda por criar um espetáculo em cima de uma história de escravidão na

De volta

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  Talvez eu não quisesse mais escrever. Passei um bom tempo procurando meu eu escondido entre os escombros e pedaços de algum material orgânico que jazia nessa casa que sou. Talvez não quisesse mais viver aquilo que era. E o que era? – pergunto-me. Não sei responder. Por isso parei de rabiscar palavras que iam ao meu coração, precisava me reconectar comigo, como se houvesse tido um órgão transplantado e o médico precisasse ligar todas as veias e artérias para fazer toda engrenagem funcionar novamente. Eu era uma máquina quebrada que precisava de um conserto. Acho que ainda preciso de óleo entre os parafusos que se conectam a mim, mas no geral a aparência está bem melhor do que antes, de forma que posso mentir para os transeuntes que está tudo em perfeita ordem depois do tradicional bom dia que proferimos um ao outro. Talvez eu não quisesse mais escrever, mas enquanto o cursor pisca na tela do Word reflito que eu precisava voltar urgentemente a fazê-lo.  

Ama-se só

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Ama-se a ideia, o lugar, o sabor, o toque, o cheiro. Ama-se a sensação tátil do cobertor abraçando o seu corpo, do travesseiro acariciando sua cabeça num hotel 4 estrelas da última promoção do Booking . A pupila dilata pelo conjunto da obra de Michelangelo, a visão rápida da arquitetura catalã, o azul extasiante das praias tailandesas, o colorido dos pratos mediterrâneos. E tudo isso pode ser feito só. Porque se ama só. Se ama o abstrato, a ideia, o não palpável. Se ama a elucubração, a palavra dita, a expressão de gozo no rosto do outro. Se talvez pudéssemos ver nossa própria face não sendo em um espelho, gostaríamos mais de nós e não ficaríamos mendigando carinhos externos, quando eles são apenas fruto da necessidade fisiológica individual de se agradar. Ama-se a ideia, o lugar, o sabor, o toque, o cheiro, não pessoas.

Doeu

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Doeu como se o meu peito fosse se rasgar, o externo fraturado e as carnes amolecidas jorrando sangue. Doeu como se a existência não fizesse mais sentido, como se os lugares, as músicas e as pessoas ao meu redor insistissem em me lembrar de você. Percebi então que era hora de colocar os ossos no lugar, costurar a própria pele sem anestesia. Doeu. Gritava enquanto gemia de dor, dessas profundas, lancinantes, que não curam com analgésico algum. Até que foi passando, como aquela dorzinha de cabeça que quando esquecemos dela para de incomodar. Passou! – gritei para mim, comemorando. Mas antes só eu sei o quanto doeu.

Acostuma-se

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Acostuma-se ao barulho dos cachorros do vizinho que latem todas as noites para os transeuntes noturnos. Acostuma-se ao mau cheiro do ralo da área de serviço. Acostuma-se com os barulhos dos vizinhos em noites de quarta-feira. Acostuma-se a se sentar às sete para assistir o noticiário local na TV. Acostuma-se com as faxinas nas sextas e o lavar de roupas aos sábados. Acostuma-se com o próprio tempero e com o arroz que vez ou outra se queima.  Acostuma-se tanto com a paz reencontrada. Acostuma-se a viver numa guerra que não se vê o fim. Acostuma-se ao silêncio das manhãs de domingo. Acostuma-se a ser só. Acostuma-se a estar só. Acostuma-se.

Terapia

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Hoje não liguei para a economia dos recursos hídricos do planeta e entrei no chuveiro deixando que a água escorresse demoradamente por cada parte do meu corpo, assim como nos filmes, em que os banhos arrastados geralmente vêm acompanhados de flashs sobre a vida, a razão das coisas ou quais caminhos devem ser tomados pelo protagonista. Mas ali não existia direção de arte e a cena não era conduzida por Almodóvar. Era somente eu com os meus pensamentos deixando que a água fluísse e os pensamentos buscassem suas conexões. A cada jato de força do chuveiro e em cada gota milhões de possibilidades e milhares de subjuntivos. Foi um encontro pessoal comigo, desses encontros que a gente detesta ter porque é a nossa consciência discutindo conosco e não há possibilidade de colocar a culpa em ninguém, como de costume, pois o culpado está ali dentro e não fora, olhando com a cara de espanto para o fluxo maluco das ações e palavras. É quando a gente conversa conosco e entende que as coisas dependem